sábado, 14 de novembro de 2009

Sei lá...

Fechada em casa e impossibilitada de usar o espelho de Narciso, afunda a mão na cara húmida e recorda as acções que a tornam miserável.
Era normal culpar o mundo à sua volta e por outro lado, este, assim também retribuía.
Com as mãos abertas frente à grande lareira de pedra, deixava as lágrimas cairem no mosaico quente e desaparecerem.
Os dentes rangiam e as unhas cravavam-se na carne exposta dos braços, fazendo brotar gotículas de sangue rubro. Levou as feridas aos lábios e com a ponta da língua começou a lamber. Na lareira ficaram as brasas e o lume acendeu-se dentro dela. Pegou no cabo de uma faca de esfolar que estava ali por perto. Colocou-a em frente aos olhos enquanto fazia deslizar os dedos longuineos, primeiro ao longo da lâmina, terminando por envolver o cabo com a sua mão de púlpito.
Levantou-se.
Viu ao longe alguém a cavar duro na terra que um dia a há-de tragar com acolhedora maravilha.
Apertou o peito com força até criar duas auréolas de leite no vestido de dormir branco. Transparente de tanto uso, roto de tantos abusos.
Com a mão pousada na película vítrea da janela e com o vestido seguro pela anca, respira fundo e deixa que a corrente de ar húmida e agreste que vem lá de fora lhe beije a vagina, semi-aberta e orvalhada. E em seguida, com a faca empunhada corta pela raiz uma mão cheia de pêlos púbicos. Procura numa gaveta um alegre lacinho vermelho com que envolve os lustrosos pêlos e detem-se, palma da mão encostada ao vão da porta do quarto dos seus pais.
Entra e ajoelha-se junto à cama, uma mão no recato das duas grossas coxas e a outra na cara a varrer as lágrimas que logo de seguida desmaiou até ao peito cheio, a madeixa repousada na candura dos lençóis.
Quando acabou, virou as costas e os olhos para outra realidade que não aquela, benzeu-se antes de sair, e havia reparado, com um sorriso, no doce aroma a pecado que os seus dedos mantinham, ao desenhar em si a trindade.



3 comentários:

Brown Eyes disse...

Sei que voltaste e como os teus posts são para ler, reflectir e voltar, assim farei. Voltarei para te deixar as minhas impressões.
Beijos

Brown Eyes disse...

Hoje há tempo, como tal aí fica a minha impressão sobre mais um texto teu, tão complexo e tão simples.
Quem quereria ver-se no espelho de narciso? Quem herda a beleza herda também o destino. Morrer afogado deve ser uma morte horrível. Era bela, as belas são culpadas por o serem. A beleza não é bem aceite, apesar de se pensar que tem a vida facilitada, não é assim. Os feios odeiam os belos e perseguem-nos. Acredito que essa era a sua única culpa, no entanto, a perfeição não existe, nem Deus o é. Ao longo da bíblia permitiu que morressem inocentes, permitiu que um irmão matasse outro, por uma oferenda. Era pecadora, todos o somos, desde que Eva caiu na tentação, o paraíso desapareceu, nesse momento, a partir daí, todos sofremos, todos temos que lutar para sobreviver e todos morreremos, em pecado. Interessante como consegues fazer um retrato tão completo de uma miserável humana, em que não falta a culpa.

Brown Eyes disse...

RIPPER sei que não gostas de selinhos mas, eu não podia deixar de te premiar com um. És um dos meus favoritos e, como tal, passa no meu blog. Um beijo