sábado, 26 de dezembro de 2009

Natal...


Com as horas empedrenidas pela ânsia dos pequenos e os doces a liquefazerem-se por entre as gengivas macias dos anciães ,fluindo pelo sangue gordo sob olhar atento dos jovens adultos responsáveis. Assim se esperava o Natal na minha terra.
-Só à meia noite. - Dizia em tom conservador.
E os minutos passavam cada vez mais densamente enquanto os pequenos se afundavam em cadeiras altas de conformismo retorcido.
-Só à meia noite. - Dizia ela com olhar esgazeado, enquanto se esforçava para retezar o temperamento.
-Tem fome avozinha? - A velha sobre ergueu a sobrancelha. Era a última instância da afirmação.
-Se queres matá-la porque não lhe espetas uma faca no coração? Ou a sufocas com uma almofada enquanto dorme? Era um gesto de misericórdia. Algo inédito vindo de ti, porém uma forma mais humana de morrer, em vez de entupires o raio da velha com essas porcarias cheias de açúcar. Ou queres cegá-la ,privando-a de ver com os seus próprios olhos o uso que dás às tuas carnes desprovidas de pudor? - Dito num tom irónico, afiado com a mais banal das crueldades.
Nisto a vergonha tomou conta daquelas paredes e acabou por condensar em silêncio.
-SÓ À MEIA NOITE. - E deixando-se controlar pela ira, distribuiu selectivamente pelas faces marmóreas um bom par de estalos que ecoou pela divisão e fez acalmar as ingénuas almas rebeldes que ainda se inquietavam com ânsias.
-Meninos... e meninas. Quero-vos aqui. Na..na..não. Aqui ajoelhados ao pé do menino Jesus. - Obedeceram sem excepção. - Agora façam uma pequena retrospectiva por favor. Pensem lá bem se foram fieis a tudo aquilo que aprenderam na catequese. Se a vossa consciência não pesar, pois que às 00:00 horas em ponto estiquem o braço e abram as prendas com o vosso nome. Caso contrário devem levantar-se e ir imediatamente para a cama de mãos vazias. Compreendem? - As crianças compreendem e as mesmas crianças não arredam o pé, um centímetro que seja. - Muito bem, vejo que estes anjinhos servem o interesse do Senhor. - E dito isto, espalha um sorriso estreito que dá a volta à sala, triunfante.
-Esperem, ainda não, só quando eu disser. Pronto, abram lá.
E eles abriram e fora-lhes dada ordem imediata de recolha.
A miudita mais pequena fica para trás a olhar para o resquício enevoado de ser que era a sua avó. Com um olhar triste e pesado, a velha, por entre a pele macia dos lábios já nada habituados a articulações dignas desse nome, sussurou de forma indecifrável um "Feliz Natal" enquanto as lágrimas se afundavam nos sulcos do seu rosto.

A expressão da criança arrebatada por um sorriso eléctrico e espontâneo que levou consigo para a cama. Adormeceu com os dentes serrados, para que aquela felicidade se aninha-se dentro dela, aquecendo-a para sempre.

8 comentários:

El Matador disse...

Potente.

Ramosforest.Environment disse...

Lindo texto. Boa lição de vida.
Feliz Natal - sem remorsos, sem autoritarismos e sem contrições!!
Luiz Ramos

Cu de Barbas disse...

mt obrigado e feliz natal a ambos :)

Brown Eyes disse...

Consegues narrar factos normais com uma magnitude assombrosa, fantástica, espantosa. Li todas as prestações para este desafio e tu és único. Quem tem tamanha qualidade deve aproveita-la, ela é raríssima. Há por aí muitos escritores que lhes falta o que tens: identidade na escrita. Como já te disse toda a gente que te conhece consegue, de olhos fechados, identificar-te mas, ninguém, conseguirá imitar-te.
Beijinhos

Cu de Barbas disse...

Com alguma sorte consigo materializar o teu sonho d ser escritora na minha pessoa.

obrigado :)

Brown Eyes disse...

ahahahah. Conseguirás realizar o teu objectivo, com toda a certeza. O que satisfará a todos aqueles que te conhecem, penso que não só a mim. O meu sonho não é ser escritora, nem o meu objectivo. Os sonhos são algo que nem sempre ultrapassam o imaginário. A partir de uma certa idade deixa-se de ter sonhos, conhece-se melhor a realidade mas, no mínimo, deverão ser traçados objectivos, a curto prazo, concretizáveis.
Beijinhos

meldevespas disse...

Perfeito!
Já o disse tantas e tantas vezes, não é?
É certo que há uma identidade muito própria nos teus escritos. Um cunho pessoal, só teu, mas já tão perfeitamente reconhecivel por quem te acompanha passoa a passo. Desta vez, deixaste a usual subjectividade, para mergulhares numa realidade mais palpável, não sei se efectivamente objectiva, mas pelo menos mais linear. O que tenho a dizer, é que mesmo neste registo, que é, pode-se dizer surpreendente em ti, me deixaste de boca aberta. Está perfeito!
Beijos grande para ti, e tudo de bom para 2010, 11, 12, 13.......

Ginger disse...

Ripitito, eu senti-me lá na sala com aquelas crianças.
Um retalho muito bonito e extremamente bem contado.
Como disse a Carminho, este texto é menos subjectivo do que é usual em ti. Gostei bastante desse facto. ;)

Um bom ano pra ti*